Cenas brasileiras



TEXTO DA ORELHA
Cenas brasileiras: ensaios sobre literatura, de Igor Rossoni ultrapassa, criativa e conscientemente, as fronteiras dos gêneros ensaísticos, não raro mesclando o “espírito” da crônica – tema de um dos seus textos, um dos melhores –, o ritmo do poema e a análise textual objetiva e rigorosa, sem, entretanto, abrir mão da subjetividade e da sensibilidade, aqui aceitas como formas legítimas de conhecimento.
O autor, também poeta e ficcionista, além de teórico, ensaísta e professor universitário, não hesita em reformular o “objeto” estético da sua análise através de um olhar que não se nega como sujeito – e, mais ainda, como autor que dialoga com outros autores no âmbito da linguagem estética, deslocando incessantemente o lócus tradicional do crítico, aquele do qual se exigia isenção e distanciamento no ato de informar e formar o público leitor.
Lembra-nos que – a despeito do fato de necessitarmos de classificações, para não nos perdermos numa complexa miscelânea inter(con)textual, e dos rigores acadêmicos, com suas normatizações não poucas vezes engessantes e castradoras – os limites entre o que tradicionalmente entendemos como prosa e poesia, nas suas diversas subdivisões, ou mesmo entre o que seria ou não literatura, são, hoje, frequentemente difusas.
Este livro é, portanto, uma casa de portas abertas à análise objetiva do crítico, mas também à perspicácia do jornalista, que reúne dados e os contextualiza; à coloquialidade do cronista, que os comenta a partir de um ponto de vista pessoal e humano; e, sobretudo, à paixão do poeta que exprime o encantamento pela palavra, causando, algumas vezes, o “estranhamento” próprio da boa literatura, misturando códigos linguísticos e procurando extrair, deles, novos significados.
Creio ser esse “encantamento pela palavra” o que determina o elenco dos autores e textos aqui abordados, alguns deles antigos visitantes de outros livros de Rossoni, a começar pela autora de Laços de família, já estudada em Zen e a poética auto-reflexiva de Clarice Lispector: uma literatura de vida e como a vida (Unesp, 2002), e Manoel de Barros, idem em Fotogramas do imaginário: Manoel de Barros – Ensaios (Vento Leste, 2007).
Há canônicos: Drummond, Machado de Assis, Guimarães Rosa, João Cabral, Rubem Braga, Ariano Suassuna, Dalton Trevisan, Manuel Bandeira. Mas também nomes pouco conhecidos e/ou estudados, como os da poeta paulista Vera Lúcia de Oliveira do Tempo de doer / Tempo disoffrire, publicado em Roma; da poeta sul-matogrossense Flora Thomé, com os haicais de Nas águas do tempo; do carioca/baiano Nivaldo Lariú, autor do popularíssimo Dicionário de Baianês; dos paulistas Juó Bananére, redator do jornal O Pirralho (1911-1917); e, dentre outros, dos gaúchos Eduardo Sterzi e Ubirajara Moreira Lopes, este último autor de poesias gauchescas, dos quais o belíssimo poema “Minuano” é destacado e  transcrito, na íntegra.
E há, não devemos esquecer, “entrelugares” e territórios de afetividades (da linguagem) pelos quais o autor transita, em suas andanças líricas, em horas de pouco falares, tecendo impressões sobre estrelas e mananciais dos autores sugeridos. No breve das ventanias...

Carlos Ribeiro


SUMÁRIO

Por poesia, criatividade e amor: reflexões sobre Literatura e ensino, 09

POESIA

Poema/Poesia: que coisa há de ser isto?, 31

A poesia entre parênteses: pequena reflexão sobre imagens e criação, 37

De Barros. Textos. E outros pantanais, 41

Manoel para crianças?, 45

O menino que era ligado em despropósitos, 49

O fazedor de amanhecer, 53

Manoel de Barros: brincadeirices a partir de falas de João, 59

Olhos e ouvidos: poesia e silêncio, 65

Auto da catingueira: missão e remissão de Dassanta, 69

A poesia: itinerário do Grivo, 75

Apesar de tudo: inda é tempo de doer, 79

De pragas, acertos e previsões, 83

Farol da Barra: coisas do poente, 87

De Carlitos e esperanças. Outros ademais, 91

Drummond: tempo de sagração, 97

Drummond: cidadezinha qualquer, 101

As águas e os tempos de Flora Thomé, 107

Ah, essas Irenes..., 113

Edgar, Frida e Manuel, 117

De explosões, festejos e quietudes, 123

A poesia-limite de Eduardo Sterzi, 127

De tradição e gauchices, 131

De águas e sais: pedras e outros Cabrais, 137

Literatura e sensações: o texto/a vida, 143

Para que servem as estrelas, 147

PROSA

Daqui donde olho: o espírito da crônica, 155

A arte de não fazer nada: crônica, 161

Entre a lembrança e a recordação: Rubem Braga, 165

As meninas de Braga, 171

Sobre crônicas de Assis Brasil, 175

Clarice Lispector: do texto ao encontro de si mesmo, 179

Clarice Lispector: a via crucis do corpo, 183

Clarice no palco: a própria vida, 187

Não sei. Só sei que é assim, 193

Juó Bananére: la genti della genti, 199

Ó pai, ó..., 203

Sertões de Elomar Figueira Mello, 209

O sertão-profundo de Elomar Figueira Mello, 215

Nonada, enfim, 223

Guimarães: de estórias e histórias, 227

Gorgeios e poemações, 233

De todo espelho: os espelhos, 237

Cosme Velho, nº 18, 243

Antes da chuva: o efeito poético, 249

Patos gordos fritos, 255

E por falar em Guga: Rubem Alves, 261

Rua Descalça, 265

O gato: o escritor: o rato, 269

O vampiro de Curitiba, 275

Caio Fernando Abreu: coreografia verbal, 281




APRESENTAÇÃO

Por poesia, criatividade e amor: reflexões sobre literatura e ensino.

Primícias
As digressão teóricas e metodológicas que palmeiam este ensaio pretendem – à guisa de apresentação – refletir sobre aspectos norteadores do ensino de literatura no Brasil. O conceito de literatura aqui tratado restringe-se ao âmbito do texto escrito, emoldurado a partir dos parâmetros do cânone literário que – via de regra – está contemplado nos manuais didáticos basilares para o ensino de literatura, como conteúdo da disciplina Língua Portuguesa, nos ciclos do Ensino Fundamental e no Ensino Médio. Expostas tais advertências, vale salientar ainda que o presente texto não discorre sobre possibilidade de atuação pedagógica de variantes textuais que, nas últimas décadas, adquiriram status discursivo como modalidade pertinente para o ensino escolar, a exemplo da literatura de cordel e das diversas tipologias que configuram a poética oral afro-ibero-brasileira. Não. O objetivo primordial das reflexões encetadas a seguir é focar, de modo restrito, o ensino da chamada literatura canônica na educação formal no país. Nesse sentido, a primeira parte do texto trata de aspectos gerais que configuram o ensino de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira (LPLB) bem como sinaliza os principais pressupostos teóricos norteadores de práticas pedagógicas nas escolas do país. Em seguida, apresenta breve síntese da configuração do campo da literatura, discutindo os elementos que lhe constituem tanto no que tange ao âmbito textual quanto ao extratextual para, na sequência, discorrer reflexivamente sobre metodologias e aportes teóricos que podem apontar contribuições pertinentes ao ensino da literatura.
Por fim, o texto discorre sobre o presente livro, Cenas Brasileiras: ensaios sobre literatura, de Igor Rossoni, publicado pela Editora Vento Leste com o apoio do governo do Estado da Bahia, através de Edital de Apoio a publicação de literatura de autores baianos. Cito o meio de financiamento por compreender que a abertura de editais públicos voltados para a publicação de literatura – a contemplar o gênero ensaio, inclusive – sinaliza uma mudança na política de promoção à leitura, ao livro e, consequentemente, à literatura no país. É justamente o novo paradigma que compreende a potencialização do acesso ao livro que poderá ser responsável, no curso cronológico de ao menos uma geração, pela formação de leitores no Brasil. Antes de mais nada, o livro Cenas Brasileiras é um desafio, pois a partir de uma visão panorâmica sobre a produção nacional fornece a nós, leitores, não apenas dados sobre a cena literária, visto que se impõe como exercício criativo em sua integridade, revelando exponencialidades da linguagem literária e sugerindo sinalizações possíveis de fruição da literatura enquanto espaço de “criação leitora”.

Pela criatividade no ensino de leitura e literatura no Brasil
A orientação curricular para o ensino no Brasil é fornecida pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e, via de regra, as práticas de leitura pressupõem a funcionalidade dos textos, quer sejam ou não literários, no sentido de usá-los como “pretexto” para o ensino de normas gramaticais e outros conteúdos curriculares propostos no programa das disciplinas. No que tange ao ensino de literatura, faz parte dos conteúdos ensinar aos estudantes noções de tipologia e gêneros textuais e integra ainda a aprendizagem das características de contos, novelas, romances, crônicas, poemas, dentre outros gêneros. Entretanto, vale destacar que as aulas de literatura – contidas na carga horária de Língua Portuguesa, na maioria das instituições, não são, necessariamente, aulas de leitura. Assim, na disciplina Língua Portuguesa, os estudantes leem textos da mais variada monta, com objetivos específicos de lhes inferir as temáticas, analisá-los, resumi-los, perceber-lhes discursos e informações implícitas e, de alguma maneira, a relação que estabelecem com a realidade circundante.  As práticas de leitura na escola subsidiam a transmissão de conteúdos, ainda que da disciplina Língua Portuguesa, tais como figuras de linguagem, intertextualidade e outros.

No cenário escolar contemporâneo, a configuração descrita para o trabalho com a leitura data de cerca de duas décadas e – de algum modo – tem ampliado os percentuais de leitores no país, conforme apontam pesquisas recentes[1]. Nestes termos, vale indagar: qual o conceito de leitor pressuposto nos programas de ensino de literatura no Brasil? Antes de trazer reflexões que partilhem esta pergunta – necessariamente não me obrigando a respondê-la com precisão – destaca-se que o leitor é o estudante alfabetizado da educação básica, onde frequenta – dentre outras – a aulas da disciplina Língua Portuguesa.

Há pouco mais de uma década, segundo as orientações dos PCN que preconizam maior autonomia das instituições escolares[2], as atividades didáticas passam a demandar práticas de ensino e de aprendizagem organizadas por intermédio de projetos pedagógicos, fazendo com que as instituições de educação básica em geral passassem a formular “Projeto de Leitura”.  De modo simplificado, tais projetos visam a desenvolver “o gosto pelo livro”; “o hábito da leitura” e “a formação do leitor crítico”. Assim, a partir destas três premissas vale sinalizar conceituações que acercam os termos “gosto”, “hábito” e “crítico”. A noção de gosto converge com a ideia de que ao estudante – após o projeto – cabe gostar dos livros e não ao contrário; não faz parte da previsão de projetos de leitura que, após conhecer e se inteirar na cultura escrita, o estudante não opte por eleger os livros como seus principais objetos de entretenimento. Para o sentido de gosto[3], converge a noção do termo hábito que, na acepção dicionarial, prevê comportamento repetitivo cuja execução continuada não necessita de reflexão. 


Por sua vez, o termo “crítico” – no cômpito dos projetos de leitura – serve para qualificar o substantivo leitor e contradiz a noção de hábito, pois o processo de crítica pressupõe atividades reflexivas tanto sobre os meios – no caso aqui implicado o próprio ato da leitura – quanto sobre os temas abordados nos textos propostos. Via de regra, o termo crítico indica o objetivo de tais projetos em promover a criticidade de estudantes quanto a temas socialmente polêmicos que emergem das leituras. Os textos propostos nos projetos muitas vezes direcionam a opinião dos educandos por meio de valores que definem parâmetros de ética e justiça social. Por exemplo, com vistas a convencer e alertar aos estudantes contra o uso das drogas, na década de 80, em muitas instituições escolares em todo o país, foram indicadas como leituras curriculares as obras da trilogia O Estudante[4] (O Estudante, O Estudante II e O Estudante III), de Adelaide Carraro. O enredo é simplório e narra uma tragédia familiar originada a partir do uso de drogas por um dos protagonistas.
A reflexão tecida até aqui conduz a vislumbrar como as práticas de leitura na escola pressupõem muito mais a formação de leitores condizentes com normas morais socialmente aceitáveis, do que propriamente para o caráter libertário que a obra de arte conforma no ethos humano. Neste sentido, os projetos visam a habilitar o leitor a tornar-se crítico de aspectos que destoam de rígidas regras sociais responsáveis por organizar as sociedades contemporâneas. Por sua vez, tais práticas pouco corroboram com a formação de um leitor criativo que, ao se deparar com o texto, quer seja literário ou não, tem condições de identificar-lhe os principais elementos discursivos, posicionando-se perante eles para imprimir potencialidade interpretativa aos temas abordados. 


O leitor criativo diverge do tal “leitor crítico” visto que a este convêm aceitar o direcionamento moral que conduz à prática leitora; enquanto ao primeiro cabe usar os elementos representacionais dos textos – sobretudo os literários – para construir um pensamento individual sobre as principais normas que organizam as conveniências sociais. Neste cenário, então, podemos compreender que o ensino de literatura – independente dos condicionamentos rotineiros no seio escolar – obedece a uma cadeia de dogmas moralizantes que prima por preservar as principais instituições sociais, quais sejam, a família, a religião e a propriedade.

Nestes termos, a eleição de textos para a promoção de práticas leitores em sala segue as ofertas – na maioria dos estabelecimentos de ensino – dos livros didáticos e paradidáticos. Por sua vez, o cânone destas publicações obedece a tendências didáticas visto que a inserção de determinados textos é acompanhada de um passo a passo de atividade de “Compreensão/interpretação de texto”. A crescente inserção das camadas populares em estabelecimentos de ensino no Brasil, proporcionadas pelas políticas públicas de universalização da educação formal, revela um panorama de desigualdade quanto aos níveis de leitura dos discentes: são alarmantes os percentuais de estudantes que avançam do primeiro para o segundo ciclo do Ensino Fundamental sem portar as devidas competências leitoras. 


Assim, as práticas lastreadas na constituição de projetos de leitura, de alguma maneira, devem se ocupar em ensinar propriamente a ler, para depois buscarem formar leitores competentes de textos diversos e, por consequência, de leitores de literatura.

A ideia de que não somos um país de leitores – fincada em índices que comparam nosso desempenho ao da França, Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, por exemplo – termina por impulsionar as políticas públicas de promoção da leitura e de acesso ao livro. Quando, na verdade, o grande desafio é a melhoria efetiva da qualidade da educação, fato que deve prevê pelo menos três eixos: acesso ao livro, formação docente e promoção da leitura. A distribuição de livro nas escolas públicas pelos programas governamentais sem ações que fomentem o uso deles no cotidiano escolar pouco contribui para aproximar o estudante da literatura. 


Os discursos de fomento de um pseudo-leitor – constantemente sob a ameaça da TV, da internet e afins – serão ineficazes em resultar na materialização de leitores caso não haja mudanças substancias na educação básica, pois mesmo que balizado por projetos pedagógicos, lugar comum é citar que o ensino de literatura no Brasil enfatiza aulas expositivas, fundamentadas em livros didáticos cuja abordagem cronológica centra-se em panoramas históricos e características de estilos de épocas. 


As aulas pressupõem que os estudantes devam reconhecer a importância da leitura e da literatura, mas a escola não propriamente reconhece como importante uma série de discursos que gravitam a esfera cultural dos estudantes, quer sejam os das escolas públicas, sobretudo aqueles que habitam área de periferias e subúrbios dos grandes centros urbanos; sejam os moradores de zona rural ou mesmo aqueles que, ainda que com pleno acesso ao livro por integrarem classes econômicas majoritárias, não se interessam prioritariamente por literatura e sim por outros bens culturais. Tais práticas permitem que duas concepções de texto e de leitura ainda se manifestem nas escolas: ou o texto é visto como repositório de mensagens moralizantes ou como um conjunto de elementos gramaticais.

De um modo bem didático, é possível enumerar três vertentes que sustentam projetos e práticas de ensino; quais sejam: a filológica, a estilística e a marxista[5]. Em linhas gerais, a seguir serão sintetizados os pressupostos de cada uma e como estão diretamente implicadas no cotidiano das aulas de literatura. Como disciplina constituída historicamente a partir do estudo de textos antigos, a filologia dedicou-se à produção literária de autores que post mortem passam a integrar o panteão de determinada literatura nacional. No Brasil, um bom exemplo da contribuição filológica para constituição do cânone literário é a representatividade de Gregório de Matos como o principal poeta do estilo Barroco.


Voltada, sobremodo, para identificar a autoria e classificar os textos, a filologia impõe inestimável aporte ao ensino do patrimônio literário de uma nação. Para Maingueneau, em análise comparativa às dissidências entre filologia e linguística, àquela cabe auxiliar a “compreender o pensamento e os sentimentos de uma nação”, “o espírito de um povo (...)”[6]. Nesse sentido, a vertente filológica é um dos eixos estruturantes das práticas pedagógicas mais recentes: por meio do estabelecimento de um cânone literário nacional, os docentes da disciplina – com destaque para a educação básica – discorrem sobre um conjunto de autores e obras pré-relacionadas para constarem nos manuais didáticos.


Aos estudantes cabe se refestelarem com aspectos historiográficos, biográficos e cronológicos destes autores, cujo distanciamento temporal torna mais facilitada as interferências de possíveis interpretações sobre os textos produzidos em épocas remotas. O distanciamento histórico permite ao crítico literário, e em consequência ao professor de literatura, amplificar a percepção analítica visto que as referencialidades sociais das obras passam a ser mais facilmente compreendidas com o arrolar dos fatos históricos. Assim, o ensino herda da filologia a convicção de “que a literatura ‘exprime’ uma dada sociedade, mas a urgência de pesquisas históricas parece dispensá-la de interrogar-se sobre o modo dessa expressão”[7].

Se voltarmos os olhos às listas de literatura de concursos vestibulares, por exemplo, é possível apontar a indicação do título As vítimas algozes[8], do escritor Joaquim Manoel de Macedo, um dos destaques do romantismo do século XIX. Por conta disso, muitos manuais didáticos, resumos e apostilas trazem as novelas contidas na obra como “testemunho da escravidão no Brasil”, “retratos das concepções burguesas”, dentre outras inferências. Com base nestas interpretações – sustentadas na concepção filológica de conceber a literatura como reflexo de uma época –, a escola atual desconsidera que os coetâneos da obra refutaram-na, desprestigiando-a como testemunho da própria época. Nesse sentido, o professor de literatura, lendo a obra atualmente, deve ter a sagacidade de propor a leitura com as possibilidades que a obra alcançou no tempo dela, ao invés de meramente repetir conformações que sacralizam, de modo indiscutível, um cânone literário[9]. Entretanto, por vezes, colocar em discussão o cânone atrela-se a um exercício custoso: revisitar os parâmetros que estabelecem critérios qualificativos para os textos literários.

A vertente estilística é outro pressuposto que baliza o ensino de literatura, haja vista a concepção primordial ser-lhe justamente que “o espírito do autor exprime o espírito de sua época”[10]. A definição da qualidade de uma obra centra-se na detecção do “organismo artístico” revelador das conformações do “espírito e da natureza de um grande do escritor”[11]. Estabelecer organicamente em um texto elementos definidores do espírito do escritor exige fundamentação em critérios que, ao passo que são identificadores, também são distintivos permitindo, assim, comparar autores, épocas e estilos.


Como não poderia deixar de ser, tais critérios se fundamentam em parâmetros de qualidade que remontam tecnicamente ao estabelecimento do gosto fundante do campo literário e, em consequência, estabelece padrões para a crítica especializada ratificar a “boa literatura”. Tais parâmetros não se afinam com os critérios de mercado. Via de regra, andam na contramão: o que a crítica entende por “bom”, o mercado pode não assimilar como vendável; e o que vende pode ser considerado pela crítica “baixa literatura”.

Para dar maior sustentação aos argumentos apresentados, vale sinalizar os altos e baixos que acercam os meandros que envolvem a crítica literária – praticada fervorosamente nas associações, clubes, demais circuitos acadêmicos e nas universidades – e o ensino de literatura em âmbito escolar. Em primeiro lugar, destaca-se que a produção de crítica e historiografia literária no Brasil, outrora institucionalizada e restrita aos círculos acadêmicos, sobretudo nas faculdades e institutos de Letras em todo o país[12], chega hoje ao grande público através da internet responsável por difundir, digamos, uma crítica alternativa que, em consequência, tem servido para legitimar produções literárias também alternativas[13]. Nesse cenário, a literatura, bem como a crítica especializada, está aí, para quem quiser ler; entretanto, na prática, sabemos que não é bem assim: a crítica literária aqui denominada por alternativa ainda não foi capaz de promover mudanças substanciais nos circuitos acadêmicos, de deslocar parâmetros cristalizados no ensino de literatura e nem tampouco redimensionar as bases do cânone, de modo a ebulir as práticas escolares referente ao acesso a textos literários.

Ainda que os textos estejam na web e esta crítica alternativa, por vezes, aponte caminhos menos tortuosos ao professor de literatura, ela ainda não chegou – praticamente – às escolas, cujas bases estão assentadas nos pressupostos definidos pelos livros didáticos, os quais – em grande maioria – são constituídos a partir da crítica literária institucionalizada nas universidades.


A crítica pouco tende a se preocupar em engajar-se na formação de leitores; ao invés, atribui a função aos pedagogos e estudiosos em educação. Então, temos aqui um cenário configurado em ramos distintos e não complementares: a crítica literária preocupa-se com a análise dos textos com o intuito de formatar o (bom) gosto no campo da literatura; instaurar elos de mercado e constituir um campo próprio, por vezes desvencilhado do objeto de estudo: a literatura. À pedagogia cabe, portanto, as preocupações em difundir a leitura – e, em consequência, a leitura literária – no âmbito escolar. Prova disso é que, ao olharmos o Ensino Médio, onde na maioria atuam professores com graduação em Letras, vemos que o empenho na formação de leitores é bastante diminuído se comparado àquele empregado pelos docentes da Educação Infantil e do Ensino Fundamental; até porque, a estes últimos cabe o empenho de ensinar os estudantes a lerem.


Nesse sentido, é possível notar que nos circuitos escolares acredita-se que ao ingressar no Ensino Médio, o estudante da escola formal já saiba ler e, portanto, por si só seja capaz de tornar-se leitor. As reflexões aqui propostas não admitem generalizações grosseiras, posto que consideram possíveis exceções, tanto no cenário da educação formal pública quanto no da iniciativa privada.

Ainda neste bojo de concepções que acercam o ensino de literatura, também devem ser assinaladas aquelas que lastreiam as práticas de ensino baseadas no pressuposto marxista. Mesmo fundamentada em vertente teórica do início do século XX, a ideia de que a leitura literária contribuirá para a formação de uma massa crítica disposta a barganhar seus dotes individuais em prol de transformações socioculturais no Brasil, tem servido como mola propulsora para o engajamento – sobretudo do terceiro setor – na formação de leitores no país.


Esta vertente comporta ainda uma necessidade de reparação histórica para aqueles autores que – por conta principalmente de elementos biográficos – não alcançaram reconhecimento no seu tempo. Tais anseios buscam resignificar o cânone literário nacional no sentido de incluir vozes que representaram, no devido tempo, segmentos sociais minoritários.


São dois importantes exemplos: Lima Barreto que, menos considerado pela crítica do século XIX, ganha notoriedade em um contexto reparacionista, baseado nos estudos de literatura afro-brasileira, e também Caio Fernando Abreu, por meio da crítica homoafetiva. Os ecos de tais estudos, bem como as produções especializadas da crítica universitária, chegam às escolas de modo sumarizado, compondo o elenco dos conteúdos de historiografia literária proposto nos livros didáticos, permitindo, desta maneira, aos estudantes ‘ouvirem falar’ em determinados autores, mas não necessariamente conhecer-lhes a obra. Nesses termos, vale considerar aqui “uma contradição entre a ideologia que se julga que o texto defende e a força crítica desse texto com relação a esta mesma ideologia”[14]. Na prática, a sumarização proposta pela crítica não promove mudanças de paradigmas sociais, além de, também, não primar pelo encontro do leitor com o texto literário marginalizado, pois, afinal, que escolas já adotaram como leitura complementar Quarto de despejo, da autora Carolina Maria de Jesus?[15].


Implicações de amor na difusão do campo literário
Mas afinal, onde atua o campo literário? Como se configura? Primeiro, é bom compreender que é formado por duas vertentes de natureza constitutivamente distinta: a arte e a ciência. No âmbito artístico, o campo literário se constitui propriamente na materialização do texto literário, que se fundamenta "em sólidas estruturas textuais que pretendem ter alcance global para dizer algo sobre a sociedade, a verdade e a beleza"[16];   na outra vertente, a científica, constitui-se por intermédio da materialização da crítica, cujo protagonismo discursivo ocorre por meio da gestão do discurso literário, assinalando-lhe o caráter de instituição. 


De modo pragmático, o discurso literário é fundador na medida em que não fala sobre nenhum outro discurso; sua natureza prima pela formulação de elementos discursivos fundantes sobre a natureza dos temas abordados a partir da representação da realidade material. A realidade sobre a qual o discurso crítico se volta é a realidade do discurso literário, haja vista seu único meio de se instituir seja se debruçar sobre ela. Assim, a relação entre crítica e literatura se manifesta na intermediação entre um discurso que diz e outro que diz a partir do previamente estabelecido. A sintonia entre ambos deveria ecoar em um terceiro desdobramento: o discurso formador para o conhecimento e a difusão do discurso literário, estabelecido, pois, a partir da práxis pedagógica. 
De modo pragmático, a sintonia entre literatura e crítica deveria ecoar produtivamente para a difusão – o dar a conhecer sobre – do discurso literário, posto que a crítica somente se constitui discursivamente por intermédio da própria existência do texto literário. Entretanto, as dissonâncias terminam por enevoar o campo da literatura, dificultando-lhe o acesso e a propagação, posto que – via de regra – a crítica se coloca acima da literatura e, logicamente, da prática promotora da apreensão do texto literário. A tendência aos processos dissonantes, de certa forma, pende mais à consolidação da vertente científica, pois o campo artístico, por ser de natureza fundante, instaura-se por si e em si mesmo, enquanto que o científico, por ser de natureza investigativa, necessita de objeto distinto de si mesmo para validar-se. Porém, da constituição de ambos é que se solidifica o campo literário, posto que é a crítica quem – em nome de consolidar-se como ciência – empreende esforços para determinar o que é ou não é artístico.
Nesse sentido, a consolidação do campo literário termina por se submeter aos anseios da crítica literária em se firmar como ciência. É menos provável que a literatura suscite dúvidas sobre sua própria natureza – posto que, se constitui também através do próprio processo compositivo – do que a crítica, a qual enceta outros mecanismos de constituição. Assim, o discurso da crítica não se consuma como processo; ao invés, firma-se a partir do momento em que se consolida como produto acabado e com vigor suficiente para validar a própria emergência da literatura. A crítica não se preocupa, necessariamente, com a literatura e sim, muitas vezes, em tê-la como meio – e não como finalidade – para figurar, em suposição, como estatuto de campo discursivo autônomo. Nesta configuração, ao crítico literário restam poucas possibilidades de vislumbrar os procedimentos de ensino e de aprendizagem, uma vez que tais mecanismos tenderiam, de modo obrigatório, a observarem – com rigor de finalidade – o texto literário. 
A atuação da crítica não se compatibiliza com os anseios da produção de literatura, uma vez que seu anseio primordial é ser lida. A crítica colabora para a instauração de critérios teóricos, conceituais e metodológicos que, tangencialmente, contribuem para a disseminação da leitura por intermédio do universo escolar. Os ecos do discurso da crítica literária chegam às escolas brasileiras pelos conteúdos propostos nos manuais didáticos, das famigeradas listas indicativas para exames vestibulares e, decerto de maneira mais rentável, para os sumários que apresentam títulos das principais editoras atuantes no Brasil para o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL). 


Devido à configuração deste cenário, é possível afirmar que as vertentes da crítica literária brasileira – tanto aquela consolidada nos circuitos acadêmicos quanto à alternativa, difundida por via digital – pelos mais diversos motivos, estão apartadas do circuito da formação de leitores. Tais vertentes estão distanciadas, pela necessidade de instituição do discurso como ciência, das preocupações prementes com a formação de leitores através da educação formal. Como consequência deste fato, a contingência de projetos de pesquisa e/ou extensão na área de Letras voltadas para a formação de leitores é menor do que na área de Pedagogia.
Os profissionais de Letras, ainda que em grande maioria disponham de mais alargadas possibilidades de emprego em áreas educacionais, são potencialmente menos instigados a trabalhar com a formação de leitores. Nos cursos de graduação, além dos eixos que se concentram na preparação para a docência, existem aqueles que preparam para a pesquisa. Como se profícua fosse esta separação, os estudantes são instigados a substituírem a criatividade ­– imprescindível, pois, aos procedimentos necessários à formação de leitores – pela cientificidade e, portanto, conduzidos a assumir vocabulário, postura e atitudes capazes de legitimar o discurso científico, que se pressupõe característico da crítica.   
Romper com estes nichos exige do estudante, do professor e, por conseguinte, do crítico literário a insurgência primaz dos artistas, não para que a pulsão emotiva suplante a reflexiva, mas para que aquela se fortifique de modo tal a estabelecer com a crítica uma profícua convivência cuja base elementar seja o entendimento da literatura como finalidade e não como recurso para suplantá-la.
Ao encontro da poesia
A publicação Cenas brasileiras: ensaios sobre Literatura se propõe a investigar vários sucessos literários e possibilitar abordagens sistêmicas sobre o trabalho com a linguagem desempenhado por autores do quadro da literatura nacional – canônicos ou não – isoladamente ou em conexão com outros autores, bem como estudos interrelacionais entre o discurso literário e discursos pertinentes a outros códigos de expressão. Orienta ao estabelecimento de relações internas e externas que venham a constituir cenas do universo de criação a partir do elemento literário: todos os ensaios têm como partido composicional a compreensão de que o enunciador se mantém sob os auspícios da norma ou desvia-se dela com maior ou menor intensidade; dissemina o poder de consciência que o enunciador expressa em relação aos recursos retóricos que o signo verbal lhe dispõe. Assim, o trabalho do enunciador na construção textual independe diretamente das esferas exteriores que moldam o cânone literário.
O partido se faz pertinente em virtude da ideia do autor de que toda obra de arte – por natureza – se encontra, ao menos, a um passo-luz de qualquer manifestação crítico-análitica que sobre ela se debruce. Ao que parece, as correntes da crítica literária vem buscando resolver, cada uma à própria maneira, o enigma/mistério da expressão artística. Assim se apresentam com o intuito fundante de trazerem à luz uma abordagem que se pretende definitiva e totalizante. Entretanto, o fazem com elementos de que dispõem por natureza própria, qual seja, como expressão do conhecimento científico. É aí que acabam por construir, ao invés da resolução definitiva do problema, o próprio fracasso da razão de princípio, por não darem conta do todo. 


De certo modo, isto é compreensível, pois a potencialidade da crítica de Igor Rossoni se impõe no questionamento de como, com um instrumento primordialmente de razão unitiva, se pode capturar e resolver uma dada matéria cuja característica primeira é a de ser plurissignificante? Assim, uma abordagem racionalizante de um texto artístico tende, ao invés do que a priori pretende o crítico literário, a afastar o leitor comum, pois o texto crítico sugere, para além de elucidar elementos constitutivos da linguagem literária, complexificá-lo pela tendência auratizante que as correntes críticas imprimem a este ou aquele autor. Além de que, em geral, os textos críticos são escritos em linguagem técnica e extremamente específica, ao molde de tratados, e dirigidos para especialistas da área.
Para uma abordagem ensaística que se debruça sobre um universo variável de textos literários brasileiros, Igor Rossoni, nestas cenas da literatura, adota como meta evidenciar os mais diversos procedimentos praticados na construção literária. Assim, o exercício de linguagem dos ensaios visa a mostrar a importância de tais procedimentos adotados pelo enunciador na constituição do tecido literário; alguns a saber: a ordenação – unidade relacional de um termo a outro, de um período a outro, de uma ideia a outra; o destaque consciencial do silêncio e do vazio como elemento de significação uma vez que sugere a integridade e fortaleza de toda palavra motivada artisticamente; a exponencialidade que o processo de desreferencialização do significado convencional imprime à plurissignificância da palavra literariamente concebida, dentre outros procedimentos.
A opção por, de certo modo, deixar à deriva uma abordagem estritamente racionalizante, se coaduna com o formato anunciado: ensaio. Os textos ensaísticos geralmente são elaborados em linguagem mais genérica, destinados a um público diversificado, pois, para a compreensão, não se exige obrigatoriamente o domínio técnico da área sobre a qual o ensaio se debruça. Deste modo, os cinquenta ensaios que compõem a publicação Cenas brasileiras apresentam linguagem direta, acessível, permitindo interlocução mais aproximada entre o ensaísta e seu possível leitor, pois, se por um lado contém o caráter intelectivo do texto; por outro, esta qualidade só se concretiza, efetivamente, na medida em que é contatado pelo receptor. Nesse sentido, se valer da linguagem é sempre “um ato para” e não uma ação retida a si mesmo. 


Por conceber pensamento desta natureza, o modo de utilização do discurso ensaístico – versado para investigar procedimentos de manipulação de linguagem na construção do tecido literário – também irá se moldar a uma tentativa de aproximar ao máximo, respeitadas as características intrínsecas de cada possibilidade de utilização do verbo, uma linguagem de outra. Ou seja, a analítica da artística, visando a amalgamá-las para capturar aquilo que uma abordagem apenas tecnicista geralmente deixa escapulir. Enfim, tal procedimento tende a minimizar o abismo que se instaura entre a linguagem técnica – empreendida pela critica literária – e a artística – concebida pelo criador literário. Este abismo potencializa-se, sobremaneira, vez que se transfere para a relação leitor/texto crítico e, conseguintemente, leitor/texto literário.
Devido aos sucessos elencados, acreditamos que a publicação de Cenas brasileiras: ensaios sobre Literatura contribui para aproximar o texto literário do leitor comum, aquele que busca a literatura como entretenimento em momentos casuais de leitura. Além disso, objetiva prioritariamente, atingir um público em formação, a exemplo de estudantes de graduação em letras, pedagogia, sociologia, comunicação social, antropologia, filosofia, artes dentre outros. A publicação pretende ainda subsidiar o trabalho com o texto literário em sala de aula, em vários níveis de ensino; haja vista que a partir da compreensão dos processos constitutivos dos textos artísticos na modalidade literária, os professores – sobretudo aqueles que lidam com o ensino da leitura e da escrita – poderão melhor explorar, junto aos estudantes, universos mais significativos na produção de linguagens.
Enfim, Cenas Brasileiras exercita-se para a difusão do texto artístico, para dar a conhecer sobre o texto literário, pois prefere – por meio dos afetos – promover o encontro humano com a literatura, com o cotidiano da poesia: O encontro foi mais ou menos assim: livro descansado sobre escrivaninha. Acaso, abertura em página qualquer. Lá estava ele. Três pequeninas estrofes[17].
Nestes termos, caro Leitor, penso que o exercício empreendido na publicação que por hora me coube apresentar, efetiva ensejo de ressurreição da escola; pois, embora a pulsão tecnicista se constitua em elemento de ensino necessário, afasta-lhe da carência que temos – no tato com o aprendizado experiencial – de poesia, de criatividade e de amor.

                                                                                  Gal Meirelles
Salvador, setembro 2011
[1] Uma das importantes pesquisas foi realizada em duas versões 2001 e 2007 e conforme seus resultados “A maior parcela de não-leitores está entre os adultos: 30 a 39 (15%), 40 a 49 (15%), 50 a 59 (13%) e 60 a 69 (11%). O número de não-leitores diminui de acordo com a renda familiar e de acordo com a classe social. Quase não há não-leitores na classe A e há apenas 1% de não-leitores quando a renda familiar é de mais de 10 salários mínimos. Isso pode levar à conclusão de que o poder aquisitivo é significativo para a constituição de leitores assíduos.” Cunha. Maria Antonieta da. Acesso à leitura no Brasil: considerações a partir da pesquisa. Retratos da leitura no Brasil In. www.prolivro.org.br acesso aos 18 de julho de 2011. p.12

[2] Os Parâmetros Curriculares Nacionais foram publicados pelo Ministério da Educação e do Desporto (MEC) em 1997 e 1998, respectivamente, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de 1ª a 4ª séries (BRASIL. MEC, 1997a) e de 5ª a 8ª séries (BRASIL. MEC, 1998).

[3] Para Bourdieu, O gosto não é visto como simples subjetividade, mas sim como “objetividade interiorizada” Bourdieu, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo, Edusp; Porto Alegre, RS; Zouk, 2008.

[4] A primeira edição de O Estudante é de 1975, seguido do II e III nos anos subsequentes. Em 2006, o título alcançou a 50ª edição, mostrando como, após três décadas, os pressupostos que balizam a leitura em âmbito escolar ainda se mantêm.

[5] Tais considerações ecoam nas três condições preconizadas por Dominique Maingueneau para a análise do texto literário.

[6] Maingueneau, Dominique. Discurso Literário. São Paulo; Contexto, 2006. p. 16

[7] Maingueneau, Dominique. Op. Cit. p. 18.

[8] Há cerca de 10 anos a referida obra figura na lista do concurso da Universidade Federal da Bahia conforme consta em http://www.vestibular.ufba.br/livros_indicados.htm.

[9] Sobre as críticas sofridas pelo livro As vítimas algozes vale as considerações de Ubiratan Machado: “Alencar empregou a mesma dureza na análise de As vítimas-algozes, volume de novelas lançado por Joaquim Manuel de Macedo em 1869, por certo o livro mais atacado pela crítica durante o período romântico. Nenhuma outra obra levou tantas e tão violentas bordoadas”. MACHADO, Ubiratan. A vida literária no Brasil durante o romantismo. Rio de Janeiro: Eduerj, 2001. p. 324

[10] Maingueneau, Dominique. op. cit. p. 19.

[11] Spitzer, Leo apud. Maingueneau, Dominique. op. cit. p. 19

[12] Sobre polêmicas que acaloraram discussões na década de 70 do século XX relativas à formação de professores nos cursos de Letras, Lígia Chiappini opina também sobre os dias atuais: “É de transplantes e rejeições que temos de falar quando tratamos de teorias literárias em nossa universidade; transplantes e rejeições de modelos teóricos e de modelos educacionais, porque produzir um saber sobre a literatura, nesse contexto, é refletir sobre a dependência, é redefinir, excentricamente, em relação aos centros de decisão econômica e cultural, o que aí se diz, se faz e se nos vende: do conceito de literatura ao conceito de teoria literária; do conceito de ensino ao conceito de pesquisa – dos campos de uma problemática que têm não poucos ângulos que se interseccionam e cujos cruzamentos é preciso analisar, se quisermos sujeitos de nosso processo cultural.” CHIAPPINI, Lígia. Reinvenção da Catedral. São Paulo: Cortez, 2005, p. 225.

[13] Vale enumerar alguns sites e blogs que constituem a cena da literatura baiana nesta primeira década do novo milênio: www.carlosribeiroescritor.com.br; nonleia.blogspot.com; souhospededoasturias.blogspot.com dentre outros que representam a produção de literatura e crítica no Estado.

[14] Maingueneau, Dominique. op. cit. p. 23.

[15] A obra teve a primeira edição em 1960 e revelou a autora que era catadora de papel e morava na favela paulistana de Canindé. Segundo Oswaldo Camargo, “Surpreendentemente virou um fenômeno ligado ao mercado de livro, tendo vendido dez mil exemplares nos três primeiros dias do lançamento; passados seis meses, 90 mil, chegando a alcançar, no espaço de um ano, a vendagem de Jorge Amado, o escritor brasileiro mais lido”.  In. Jornal das exposições, Museu Afro-Brasil, maio de 2005. p. 8

[16] Maingueneau, Dominique op. cit. p. 68

[17] Rossoni, Igor. Cenas Brasileiras, p.79


Poema/Poesia: que coisa há de ser isto?


Escrever objetivando prefeita compreensão do leitor é atitude dificultosa. Isso ocorre, pois algumas circunstâncias se verificam neste suceder. Em primeiro lugar, apresenta-se a questão da diversidade de compreensão e apreensão de mundo. Neste caso, será que o que penso ou avisto atinge – no outro – o mesmo ponto de encontro que acerto comigo mesmo? Ou ainda, o que desejo expressar – por ser antes produzido pelo pensamento, portanto, concebido e proveniente de uma formulação de caráter oral – terá o mesmo sucesso de satisfação do pensamento no mundo do registro escrito?  E ainda mais, será que o que penso, traduzo – invariavelmente – em palavra escrita? E esta, se converte na mesma que o leitor, por si, recebe? De modo que a implicação produtor/leitor requer um certo despojamento de si para conectar-se no bojo da relação de complementaridade.

Por de perto vivenciar esse enfrentamento, coloco-me, especificamente, em posição de receptor e deparo-me com poema de Carlos Drummond de Andrade. Pequeno em quantidade de versos. Mesmo assim, diluo-me neles. E caminho cada vez mais para dentro deles – entregue a meus pensamentos – numa viagem de sensações inigualáveis.

Esse, então, o primeiro momento. Vivo. Solene. Depois dele – o de fazer agora: ­ escrever sobre eles. Na verdade, não se trata mais de escrever sobre o poema mas, ao escrever sobre ele, dar conta de expressar o que o poema deteve em mim. As garras de entorpecimento e/ou venturamento que – em mim – aquele discurso tão simples e, ao mesmo tempo, tão interior remoeu.

Assim, em generalidade, são os discursos de qualquer natureza. Trata-se de processo contínuo de leitura e transmissão. Caminho a frente. Ouvimos aqui, reproduzimos ali. Do oral para o oral. Do oral para o escrito. Do escrito para o escrito. E assim por diante. No entanto, o problema permanece, pois sempre temos por obrigação realizar uma tradução das informações recebidas para nosso universo de entendimento, nosso mundo particular. 

De certo modo, o poeta desliza por isso. Ele se coloca no posto de criador. Ser supremo da criação literária. E sua criatura é para ser deglutida na medida do entendimento de cada diferente receptor. A nós, pequenos mortais, é que cabe o exercício brutal da labuta no-fazer-da-coisa.

Entanto, estou aqui a dizer e dizer e do que estou falando? Está certo em se encher de tudo isso. Deste modo, deixo de coisa e apresento o poema que – por ora – apenas anunciei. Trata-se de “Poesia”. Texto inserido em Alguma Poesia com o qual Drummond, em 1930, surge no cenário da arte literária nacional. Sem não pouco alvoroço. De crítica e tal. São desta obra textos contundentes como “Poema de sete faces”: quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! Ser gauche na vida . “No meio do caminho”, que dispensa registro. “Cidadezinha qualquer”:  Devagar... as janelas olham/ Eta vida besta, meu Deus. “Quadrilha”: João amava Teresa que amava Raimundo/ que amava Maria... “Cota Zero”: Stop./ A vida parou/ ou foi o automóvel? Entre tantos de igual relevância. Contudo, o de realçar é outro. Poderia passar despercebido no rol destes mais reconhecidos como brilhantes, na produção drummoniana. Como disse, trata-se de “Poesia”:

Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto, ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia deste momento
inunda minha vida inteira.

Pois foi com esta singela – aparentemente despretenciosa – composição de oito versos que me apanhei na reflexão, motivo das linhas de agora. Neste sentido, intento delinear o processo vivenciado desde que botei olhos sobre eles. Assim, registrar o de que padeci, aponta para o exercício de transmitir, a outro, fato qualquer. Entanto...

Em primeiro lugar, toma-se ciência do que o poeta diz. E menciona – desde logo – o fato de estar envolto por estranha sensação de desconforto. Digo isto, pois deseja produzir algo que sabe existir e onde existir. O tempo dilata-se. Nota-se certo aborrecimento revoado pela ação da expressão gastei certa quantidade de tempo. E, aparentemente, nada.  Parece haver um desfocamento entre o sujeito que escreve e o objeto que possibilita o registro do que se sabe existir. A pena: não quer escrever.  O distanciamento provocado pela atitude do poeta não parece mero jeito-de-dizer de coisas. Dispõe mais. Muito mais. Sugere distância considerável entre o poema – que não quer sair – e a poesia, latejante dentro dele. Assim, o ainda não saído é o poema; a poesia, fomento fundante  que transcende o momento de concretização material de um instante único de vivência íntima – a coisa mesma em si – é viva e pulsante,  desde sempre movente e presente. Portanto, paira no cá dentro. Muito significativa a expressão: cá dentro. Cá dentro de onde? Cá dentro do que? As perguntas sugerem-se diluentes, pois as respostas translucidam no ar das suposições. No entanto, sem nos darmos conta de que o mesmo poema que a pena não quer escrever; o mesmo poema que não queria sair, saiu. Feito jorro, em explosão poética, frente aos nossos olhares inebriados. Pronto. Recém nascido do dito impossibilitado de vir à vida. Veio. Brotou poesia em terra ou asfalto. Plenificada no poema. No entanto – sugere o poeta – o poema materializado que se posta aos nossos olhos, só o é pois, ao arrebentar a casca das palavras, fez-se da negação da própria existência. E, uma vez formalizado, trouxe consigo a “alma” dele – dito assim por exclusiva falta de jeito para encontrar outra mais apropriada –, justamente a poesia deste momento que – neste momento – inunda a vida inteira do poeta. Portanto, a estranha sensação de desconforto – aparentemente presenciada – se transforma no mais autêntico regozijo. Isso se torna acessível pela opção inicial do último verso, conferindo desfecho e unidade ao poema: inunda. Observem a oposição de sentidos que os dois determinantes termos – “gastar” [início do primeiro verso] e “inundar” [início do último verso] – imprimem ao conjunto poemático. E provocam, por contraditórios, todo o estranhamento que para nosso interior se transfere.
Provamos – ao penetrar neste jogo de tensões – do instante de inquietude e de vida perene que há em todo acontecimento, recurvado sobre si mesmo.

Certo criador/pensador, Johann Christian Friedrich Hölderlin (1770-1843), mencionara que poesia é “metáfora contínua de um sentimento único”. Como é isso? Como se faz disso, isto? Isto que a poesia é.
Drummond – pela voz que edifica – não gastou hora pensando um verso. O verso fez-se por si. E, simplesmente, promoveu-se no próprio acontecimento. O poeta – condutor do processo – parece ter ficado de fora. Igualando-se à figura da pena que lhe estende dos braços de homem que é. É preciso ter mais que homem para canalizar o ser da criação. É necessário o toque de certa suspensão presentemente ativa para que a coisa – por intermédio dele – se faça por si. O texto pronto a partir da negação dele mesmo. A coisa realizada pela suposta não-realização. O fruto como que por si. O poeta lá... gastando tempo, um tempo que não é mais seu [vale a ambiguidade].

No tempo do poeta há o “gastar”, no da poesia, o “inundar”. As coisas no-acontecendo. E só. Perenemente. O sentimento é a unidade  desperta da movimentação constante das coisas sempre associada a sugestão de outras,  quase nunca esperadas. Assim se faz, assim se fez. Toques isentos de mãos, apesar da presença delas:


Eu preparo uma canção 
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam, 
e que fale como dois olhos. 

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como que ama ou sorri.
No jeito mais natura
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças. 
                                                                   (Drummond, “Canção Amiga”).

Será que me fiz entender?



Daqui donde olho: o espírito da crônica


Fico um pouco apreensivo com certas coisas que observo. E elas acabam por dizer-me: sim.  E são. Porque assim são registradas. E pronto. É o que ocorre toda vez que me manifesto daqui de meu canto. Literalmente, canto. Nos dois sentidos que assim-assim – de pronto – consigo vislumbrar. Ótimo. Estou alocado em espaço muito que bom, donde observo de rabo-d’olhos, o movimento ao derredor. Então que a minha direita – de você à esquerda, suposto leitor – dou-me com o registro de um espaço intitulado Crônica. Nele, tenho acompanhado de tudo um pouco. Por vezes: letras de música. Por outras: artigos de natureza política. Outras ainda: contos muito bem escritos – desculpe-me: tenho memória de galinha e isso me complica, às vezes, mas, recordo-me dum em que o personagem chamava-se Galhardo. Fiquei com este desígnio por vários dias na cabeça. Que nome mais sugestivo para encabeçar acontecimento inusitado como o que se verificara naquele contexto. De modo que vem bem a calhar. Ao que penso. Digo isto, pois, é de muito comum ler sem o devido acuro de atenção acerca do que se está olhando. Deste modo, quantos se detiveram em refletir – por um pingo de tempo que fosse – sobre a denominação: Crônica, para o que se encontra no respectivo espaço? Creio não. Eu próprio – confesso – não havia feito isso. Até o momento em que – por estar completamente vazio do que escrever, de dentro da página, de meu canto – comecei a espiar para os lados e dei com ele. Aí foi uma questão de rever os exemplares passados e constatar que é isso mesmo. Daí para o que faço agora: um cisco.

Pensando bem, o que acontece com o espaço aqui ao lado parece ocorrer com a questão intrínseca da “crônica” em âmbito teórico-prático. – Verdade? O gênero “crônica” é coisa que ainda muito se discute. Para uns é gênero menor. Para outros: sumo da manifestação literária. Para alguns, literatura. Para outros, jornalismo. O de interesse é que entre farpas, espinhos e rosas, o gênero aí está sempre vivo e revelador.
O termo, etmologicamente, liga-se ao radical de origem grega – “chronos”: tempo. Registra a mitologia clássica que o deus Cronos – filho de Urano e Gaia – destrona o pai e casa-se com a própria irmã, Réia. Os pais – conhecedores do futuro – predizem-lhe ser destronado por um dos próprios descendentes. Deste modo, Cronos passa a devorar todos os filhos nascidos da união com Réia. Enganado por ela – oferece-lhe a comer uma pedra – vem à luz o último da prole divina – Zeus, que lhe dá certa droga fazendo com que vomite todos os irmãos devorados. Juntos imprimem batalha contra o pai, concretizando a profecia. Pelo motivo, Cronos é tido como a personificação do tempo na medida em que – em passagem – engole tudo o que é criado ou que é criatura.

Neste sentido, num primeiro momento, o gênero passa a ser encarado como registro dos fatos passados na ordem em que sucederam. Atualmente, a crônica se presta ao resgate de flagrantes do cotidiano – como manifestação artística – sem nunca perder o radical de que provém.

O princípio mais restrito ao que se vivencia hoje, estende raiz ao século XIX. Alguns autores apontam a França como país sede. Outros a Inglaterra. O certo é que o tipo de manifestação vem no bojo do surgimento da sociedade industrial. O fato coloca a Inglaterra na dianteira da discussão. Pois bem, seja como seja, vale o sucesso do gênero estar para a história acontecida como o jornal para o fato. Algo para ser consumido rapidamente. E inserido na leitura diária. Foi assim que surgiu o folhetim – espaço localizado no rodapé de jornais, destinado a entreter os leitores, proporcionar-lhes certa dose de amenidades e descansos em meio à avalancha de notícias graves que  ocupavam as páginas dos primeiros periódicos.  Aos poucos, o que era mero passatempo, gera interesse cada vez mais crescente e se torna motivo central de atração de leitores. Como o folhetim surge motivado e a partir do jornal, a dificuldade e certa relutância em considerá-lo fora daquele contexto.

A grande diferença da linguagem da “crônica” para o texto jornalístico é a natureza de transformação. Tento explicar. Enquanto a notícia de jornal se manifesta pela estaticidade do relato de ocorrência – pois se volta, exclusiva, para registro de um fato especial ocorrido no recente do tempo –, no exercício da “crônica”, em geral, o motivo de acesso é apenas o impulso inicial. Dinamicamente nunca finda nele próprio. Diz-se que a prática da ‘crônica” erige-se sobre estrutura em “e”.  O que é isso? Mais ou menos assim: parte-se de fato qualquer do cotidiano. Este sugere – à lembrança do cronista – outro de igual ou desigual teor. Deste modo, associado ao primeiro, adiciona-se o segundo e  deste para um ponto em que a ficcionalidade  dite as regras das ações, é mera questão do “correr da pena”.

Muitos autores fazem da “crônica” espaço de atividades diversas. Humor, crítica, memória, imaginação, invenção, história, lirismo, ensaio e tal. Além de reflexão sobre o próprio ato do fazer. Cito apenas um, entre quase todos, por elucidação: José de Alencar, tido como nosso primeiro grande cronista.
Em Ao correr da pena  dá o tom  deste gênero de criação:

Obrigar um homem a percorrer todos os acontecimentos, a passar do gracejo ao assunto sério, do riso e do prazer às misérias e às chagas da sociedade; e isto com  a mesma graça e a mesma nonchalance [descuido, abandono, desleixo] com que uma senhora volta as páginas douradas de seu álbum, com toda finura e delicadeza com que uma mocinha loureira dá sota e basto a três dúzias de adoradores! Fazerem do escritor uma espécie de colibri a esvoaçar em ziguezague, e a sugar, como o mel das flores, a graça, o sal e o espírito que deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho.


Talvez por isso – por vezes – encarado como atividade menor de criação. Parece ser pelo tom. Pela circunstância. Penso que tal atitude se deva ao fato de – na “crônica” – tratar-se das coisas com certo “desleixo” e “abandono”.
Entanto, quero crer, é exatamente por este assédio que a modalidade ganha corpo e profundidade estrutural. Oferece feição de fácil aparência e superficialidade. Contudo, quando atingido o ponto certo de temperança explode status de novidade e esplendor.
Fernando Sabino nos brinda com reflexão sobre o caso, em Deixa o Alfredo falar:

A crônica parece o gênero mais fácil, e realmente é, para os que não ousam ou não merecem tentar uma experiência literária mais duradoura.


Interessante, apesar de ser alertado sobre as benesses de evitar-lhe o uso. Quem daria – assim de primeira vista – crédito para texto intitulado como este? Aí o fato. O tom jocoso de aparente desleixo de que falara Alencar.  Então, internamente, o cronista abusa de seriedade mesclada a fino tom de ironia ao afirmar que o gênero – de certa forma por ele consagrado – é mesmo de pouca bagagem mas, apenas para os que não o experimentam como atividade vital. Aí o ser da coisa. Que a muitos escapa. Assim, “crônica” permanece no tempo, em virtude dele próprio. Registro de época transcende-se no que tem de mais referencial; copula com certo tom de festejo e adquire ares de seriedade exigindo – para plena concretização – muita competência linguística dos  criadores.   

Dentro deste espírito aditivo e, literariamente, compromissado se insere – à alma do gênero – a figura do cronista. Sereno – como a promover sutilidades – pulula de palavra em palavra, de fato em fato, de imaginação em imaginação como sobre o beijo das flores em flor. Assim, o cronista é aquele que esvoaça sobre as tertúlias dos acontecimentos, tornando-os soltos e profundos, leves e densos, tristes e plangentes. 
Machado, em “Miscelânias/Aquarelas”,  também se detém em analisar tal figura:

O folhetinista é a fusão admirável do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo. Estes dois elementos, arredados como pólos, heterogênios como água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do novo animal.  

Que vai. Estala aqui. Estrila ali. E deixa marca indelével na cultura dos povos. Sem dizer no benefício social que a “crônica” possibilita ao escritor que lhe dá de mão. No que diz respeito à sobrevivência econômica.  Principalmente em terras como a nossa onde pouco se lê e o mercado editorial  brinca de bandido e mocinho com a gente. Mãos ao alto: isto é um livro... 
Aqui, escritor quase morre de fome (salvo uma ou outra exceção). Os que se agarram a ela, nos grandes veículos de comunicação, até conseguem pagar as contas no termino do mês. Se não... catam cavaco das coisas por aí.

Estamos de volta ao ponto de partida. Deste modo, o que se passa aqui ao lado, como disse, vem bem a calhar. Não digo estar ali uma “crônica” mas, o espaço em si apresenta o tom espiritual que rege  as coordenadas mais intensas das sanidades que se desmoronam e se reconstroem sobre o pó dos tempos. Pela miscelânia e pelo espírito do espaço em branco.
Graças a Deus.    

AUTOR

IGOR ROSSONI


Arquiteto, escritor, ensaísta, Pós-Doutor em Teoria da Literatura. Professor de Graduação e do Programa de Pós-Graduação em "Literatura e Cultura" do Instituto de Letras-UFBA e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em "Cultura e Sociedade" – IHAC/UFBA. Publicou Pátio (1981); Vértebra (1983); Zen  e a poética auto-reflexiva de Clarice Lispector: uma literatura de vida e como vida (2002); Os inocentes (2006); Fotogramas do imaginário: Manoel de Barros (2007); Capturas do Instante (2007); Exercício para clarineta (2010); Tardes com anões (col., 2011); Entredentes (2012). Assina o blog: LetrasRossoni.blogspot.com

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